terça-feira, 6 de outubro de 2009

As primeiras perseguições



É no reinado de Nero, em 64, que aparecem medidas contra os cristãos. Menciona-as Suetônio: "Nero entregou aos suplícios os cristãos, raça entregue a uma superstição nova e culpada. A narração de Tácito é mais extensa: "Para fazer calar os rumores relativos ao incêndio de Roma, Nero designou como acusados a indivíduos detestados por causa de suas abominações, a quem o povo chamava de cristãos. O nome lhes veio de Chrestos que, sob Tibério, fora entregue ao suplicio pelo procurador Pôncio Pilatos. Reprimida por momentos, a execrável superstição transbordou novamente não apenas na Judéia, berço do flagelo, mas em Roma, para onde aflui tudo o que se conhece de mais atroz e infame. Prenderam primeiro os que confessavam a fé, em seguida, por indicação destes, prenderam uma multidão de outros, acusados não tanto de terem posto fogo na cidade mas de odiarem o gênero humano".
O texto esta a pedir algumas precisões. Defrontamo-nos em primeiro lugar com os termos Chrestos e chrestiani, que já figuram em Suetônio. Termos bem atestados, porque opõem o nome de cristão ao da acusação de abominação, que tem como base um jogo de palavras com christós e chréstos, bom. A alusão a Pôncio Pilatos é interessante, do ponto de vista das relações entre o Império romano e os cristãos. No entanto o que mais importa é o motivo da acusação. Ao lado da censura por atividade sediciosa, ligada ao messianismo, vemos aparecer o do odium humani generis. A palavra traduz o conceito de misantropia. A mesma acusação já fora levantada contra os judeus. Visa essencialmente o fato de uma comunidade se fazer suspeita por ter seus costumes próprios. Fácil é passar da idéia de costumes diferentes para a idéia de costumes desumanos, na hora em que se considera a civilização greco-romana como norma da filantropia, ou seja do humanismo. Dai as acusações, já levantadas contra os judeus e renovadas contra os cristãos, de adorarem um asno, de praticarem ritos de assassínios e incestos. Estamos aqui diante da primeira fase do julgamento dos pagãos sobre os cristãos. Estes começam a ser diferenciados dos judeus, mas as acusações suscitadas contra eles inspiram-se ainda nas que se levantavam contra os mesmos judeus.
Sob Galba, Otão e Vitélio que se sucedem em 68, não encontramos traço algum de perseguição. O mesmo se diga do período de Vespasiano (68-79) e Tito (79-81). A atenção do poder romano está concentrada na revolta judaica e os cristãos parecem esquecidos. Mas, sob Domiciano (81-96), uma perseguição é assinalada por Mélito (H. E. 2,6,9). Ver igualmente 3,17). Parece prender-se a fatos bastante desencontrados. Na Palestina, após a queda de Jerusalém, uma parte dos judeu-cristãos refugiados em Pela havia sem dúvida voltado a Jerusalém. Eusébio relata que se reuniam em torno dos parentes do Senhor (H. E. 3,2). Simeão, primo de Jesus, sucedera a Tiago. Ora, Hegesipo conta que Domiciano mandou comparecer diante de si os descendentes de Judas, um outro primo do Senhor, ambos porque lhe foram denunciados como descendentes de Davi (H. E. 3,20,1-6). Pouco antes Eusébio lembrava que Vespasiano procurara todos os descendentes de Davi após a tomada de Jerusalém (H. E. 3,12). Trata-se assim da repressão ao messianismo judeu. Os parentes de Cristo se encontram implicados pelo fato da descendência davídica de Jesus, proclamada no querigma.
Em Roma surge outro problema. Domiciano "golpeia impiedosamente toda resistência na aristocracia e entre os intelectuais. Em meio as pessoas atingidas podem bem ter figurado os cristãos. Seria o caso de Mânio Acílio Glábrio, cônsul em 91, executado com outros dois aristocratas como "ateu" e "inovador" (Domic., 10). Ora, uma das propriedades dos Acílios Glábrios serviu mais tarde de cemitério aos cristãos. Mais precisa é a tradição que vê em Flávio Clemente, primo de Tito e de Domiciano, e sobretudo em sua mulher Flávia Domitila, cristãos. Ele foi condenado à morte em 95 por ateísmo e "costumes judeus" (Domic. 15), e ela exilada para a ilha de Pôncia em 96 (H. E. 3,18,4). O cemitério de Domitila poderia ter sido uma das propriedades que teriam servido para a sepultura dos cristãos. Uma alusão de Clemente em sua Epistola 1,1 às desgraças que caíram sobre a igreja de Roma tem por mira, quem sabe, estas perseguições.
Esses fatos guardam no entanto certo caráter problemático. Existe porém outra região na qual uma perseguição de cristãos por Domiciano é atestada sem sombra de duvida, é a Ásia Menor. Possuímos ai um documento capital - que o confirme o Apocalipse. Informa-nos ele sobre um grupo de igrejas da Ásia, da Lídia e da Frígia. Ora, verifica-se como certo que nesta hora campeiam perseguições na região. O próprio João se viu exilado de Éfeso a Patmos (1,9). A igreja de Éfeso sofreu "pelo nome" de Cristo (2,3). Em Pérgamo, Antipas foi morto (2,13) e isso esta em relação com "o trono de Satanás", que designa provavelmente o templo de Roma ou seja o culto imperial. Tertuliano refere o martírio de Antipas no reinado de Domiciano (Escorpiácio 12,7). João anuncia alem disso à Igreja de Esmirna que diversos de seus membros hão de ser lançados a prisão (2,10). Não esqueçamos que o gênero mesmo do Apocalipse consiste em traduzir uma mensagem de esperança para os fiéis provados e supõe assim a perseguição.
Mas se o Apocalipse é importante, por assinalar o fato das perseguições aos cristãos na Ásia sob Domiciano, ele o é mais ainda como documento da mudança de atitude dos cristãos em relação ao Império. O contraste com as Epistolas de São Paulo é notório. Aos olhos deste o perigo consistia em deixar-se a Igreja arrastar pêlos Judeus para uma atitude anti-romana. Multiplica ele pois os apelos à submissão ao poder imperial. A situação agora mudou. O Império, desde Nero, é considerado como perseguidor dos cristãos. João descreve-o sob o símbolo da besta que sobe do mar. Os dez chifres e as sete cabeças representam a lista dos imperadores (13,1). As alusões ao culto imperial são explicitas (2,10; 3,10; 13,3-8). Roma é designada pelo nome de Babilônia, como símbolo do paganismo perseguidor (14,8). A mesma hostilidade em relação a Roma se encontra na Ásia nesta época, como o revela o V livro dos Oráculos Sibilinos.
O tema do Império perseguidor cristaliza-se principalmente em torno do personagem de Nero. É provável seja ele o designado pelo número 666 (13,18). Além disso a crença em sua sobrevivência e em seu retorno havia surgido logo após a morte, nos meios pagãos. Reaparece no Apocalipse (13,12-14; 17,8). Mas o Apocalipse não é o único livro cristão do tempo de Domiciano em que figure o tema. A Ascensão de Isaías é da mesma época. É provável que esteja relacionada com a comunidade cristã da Síria. Encontramos também nela o tema do retorno de Nero (4,2,4). Trata do culto ao imperador (4,11). A Igreja chamada "plantação feita pêlos Doze Apóstolos do Bem-Amado" (tipicamente judeu-cristão) é perseguida (4,3). Um dos Doze é morto, alusão certa ao martírio de Pedro sob Nero (4,3). Convém anotarmos afinal que o tema reaparece nos apocalipses judeus do tempo no IV livro de Esdras (5 6) no IV Livro dos Oráculos Sibilinos (119-120; 137-139), sendo o primeiro palestinense e o último obra asiata.
Podemos indagar que é que provocou este endurecimento tanto do poder imperial contra os cristãos como dos cristãos contra Roma. Quer parecer-nos que do lado romano se trate de um aspecto do conflito do Império com os judeus. Confundindo-os mais ou menos com os judeus é que os Flavianos perseguiram os cristãos. Por exemplo. os membros da aristocracia romana são perseguidos por causa de costumes judeus; os parentes de Jesus são presos na Palestina como descendentes de Davi. Explica-se assim por que as igrejas da Ásia tenham sido particularmente visadas. O cristianismo desta região se apresentava como animado por correntes messiânicas. É lá que campeia o milenarismo, quer dizer, a expectativa pelo estabelecimento do reino universal de Cristo tendo Jerusalém como centro. Pápias vincula tal doutrina aos presbíteros da Ásia, discípulos dos Apóstolos (H. E. 3,39,12). O próprio São João faz alusão a esta atitude no Apocalipse. Cerinto lhe confere uma forma heterodoxa (H. E. 3,28,1-6).
É natural que as autoridades romanas tenham confundido o milenarismo asiata com o zelotismo judeu. Tal confusão evidentemente não se justificava. Não se há de negar no entanto que o meio joanita tenha continuado profundamente imbuído do judaismo. Compreendemos assim que a perseguição romana contra os judeus o tenha atingido e o tenha considerado como solidário com eles. De fato o reinado de Domiciano apresenta para a Ásia e a Palestina um paralelismo impressionante com a literatura judaica e a cristã. O IV Esdras, o IV livro dos Oráculos Sibilinos por um lado o Apocalipse de João do outro são a expressão de uma mesma hostilidade com Roma.

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